DOCs Selecionamos diferentes
documentários que abordam a cena free jazzística, filmes realizados em diversas
épocas que registram e ajudam a preservar a memória dessa música...
Por Fabricio Vieira
Se o free jazz foi praticamente ignorado no famoso documentário
"Jazz", de Ken Burns, outros diretores trataram de retratar a face
mais radical do gênero. Diferentes registros têm ajudado a preservar a memória
e a história do free jazz (e do free impro), formando já um painel
relativamente extenso e abrangente desse universo sonoro. Fizemos um apanhado
de diferentes documentários que, nas últimas décadas, investigaram o mundo da
free music. São filmes realizados em diferentes formatos e países, alguns deles
editados em DVD, outros disponíveis na íntegra no Youtube ou Vimeo, que podem ajudar a
compreender um pouco mais essa seara sonora (infelizmente, pouco desse material
tem legenda em português), sendo uma rica introdução à free music. Aqui
selecionamos apenas filmes que tratam da cena: os docs biográficos, que se focam
exclusivamente na história de um músico, serão destacados em um outro post...
"ORNETTE COLEMAN TRIO + SOUND??" (1966/67)
Dir.: Dick Fontaine
O diretor britânico Dick Fontaine realizou esses dois curtas nos anos
de 1966/67. A história do “Ornette Coleman Trio” (lançado
originalmente como “David, Moffett e Ornette”) é simples: Coleman estava em
Paris para participar da criação da trilha sonora do filme “Who’s Crazy”
(depois editada em CD). E Fontaine aproveitou para fazer um pequeno
documentário sobre o trabalho, com declarações dos músicos alternando-se com
cenas deles em ação no estúdio e em ensaios. O saxofonista estava acompanhado
por seu trio à época, o baixista David Izenzon e o baterista Charles Moffett.
Além do sax, Coleman aparece tocando trompete, violino e dedilhando um piano. Afora
o prazer de ver Ornette em ação, há um segundo curta, da mesma época, que
costuma ser lançado junto: “Sound??”, peça que reúne John Cage (1912-1992) e
Rahsaan Roland Kirk (1936-1977). Mas os músicos nunca estão em cena juntos. O
que Fontaine faz é colocar Cage para expor suas ideias sobre as relações entre
som e silêncio, enquanto imagens de Roland Kirk tocando em vários contextos
surgem na tela. E o resultado é realmente complexo e instigante. Os dois curtas
foram lançados em DVD no Brasil em 2010.
“IMAGINE THE SOUND” (1981)
Dir.: Ron Mann
Documentário pioneiro no registro do universo do free
jazz, Imagine the Sound foca sua câmera em quatro destacadas figuras
do gênero: Cecil Taylor, Archie Shepp, Paul Bley e Bill Dixon. Entre
entrevistas e apresentações, o filme exibe um pouco da arte desses pioneiros –
protagonistas do ápice do free jazz em meados dos anos 1960 – e ajuda a
construir uma narrativa muito pouco documentada em vídeo até aquele momento. Os
quatro músicos foram convidados a criar novas peças para o filme; Taylor, por
exemplo, apresenta uma de suas intensas criações solistas, além de aparecer
recitando seus intrigantes poemas, que havia passado a escrever de forma mais
constante exatamente na época em que o filme foi realizado. Após longo período
fora de catálogo, foi reeditado em DVD em 2007.
“RISING TONES CROSS” (1985)
Dir.: Ebba Jahn
O pano de fundo deste filme é o Sound Unity Festival – precursor do
icônico Vision Festival, organizado por William Parker e Patricia Nicholson –,
realizado em Nova York em 1984, que reuniu grandes nomes
do free europeu e dos EUA (Peter Brotzmann, Rashied Ali, Jemeel Moondoc,
Don Cherry, Irène Schweizer, Dennis Charles, Marilyn Crispell, Charles Tyler,
Roy Campbell Jr., David S. Ware, Frank Wright, Jeane Lee...). Mas
quem polariza mesmo o documentário são duas figuras: o baixista
alemão Peter Kowald (1944-2001) e o saxofonista Charles Gayle.
São eles que concentram as entrevistas e aparecem em ação juntos em diferentes
contextos. Com Kowald e Gayle, o diretor Ebba Jahn demarca dois extremos: o
músico europeu já reconhecido e respeitado no universo do free, que passava uma
temporada nos EUA; e o saxofonista outsider norte-americano, à margem
dentro da própria marginalizada cena – Gayle, então com 45 anos, nunca tinha
lançado um disco, o que levaria ainda alguns anos para acontecer. Disponível em
DVD.
“ON THE EDGE: Improvisation in Music” (1992)
Dir.: Jeremy Marr
Escrito e narrado pelo guitarrista Derek Bailey, este documentário
sobre improvisação foi produzido para a TV britânica. Dividido em quatro partes
(“Passing It On”, “Movements in Time”, “A Liberation Thing” e “Nothin’ Premeditated”)
com cerca de 50 minutos cada, foi apresentado pelo Channel 4 no começo de 1992.
Partindo do livro “Improvisation: Its Nature and Practice”, do próprio Bailey,
o documentário aborda a improvisação em suas mais variadas formas, tanto na
música ocidental quanto oriental. No longo panorama apresentado, podemos
assistir em ação, tocando e expondo suas ideias, alguns dos expoentes do
universo do free: Butch Morris, Steve Noble, George Lewis, Alex Ward, Douglas
Ewart, John Zorn... Mas a viagem é bem mais ampla que o mundo do free;
encontramos músicos das mais variadas origens e perspectivas lidando com a
liberdade criacional e interpretativa, sem preconceitos, apenas música viva.
“INSIDE OUT IN THE OPEN” (2001)
Dir.: Alan Roth
Com o subtítulo “An Expressionist Journey into the World Known as Free
Jazz”, o diretor Alan Routh não deixa dúvidas sobre sua intenção ao realizar
este documentário. E para essa jornada no mundo do free jazz, ele convocou
figuras destacadas dos tempos primeiros do gênero: Joseph Jarman, Alan Silva,
Burton Greene, Baikida Carroll, Roswell Rud e os já falecidos Marion Brown
(1931-2010) e John Tchicai (1936-2012). Há também a participação de gerações
mais novas no filme, dentre os quais Matthew Shipp, Susie Ibarra e William Parker.
Alternando depoimentos e passagens de concertos (a maioria captado nos anos
90), Inside Out in the Open busca falar do free jazz de ontem e de
hoje, num panorama relativamente rápido (afinal, são cinco décadas de gênero
para cerca de 60 minutos de filme), mas envolvente. Uma boa introdução a essa
música vital. Lançado em DVD e Blu-ray pelo selo ESP-Disk.
“NOISY PEOPLE” (2007)
Dir.: Tim Perkis
Interessante documentário que busca retratar a improvisação livre
destacando nomes que não estão entre as estrelas do gênero, como é mais comum
ocorrer nesse tipo de filme. Focado na Bay Area, em San Francisco, Tim Perkis
destaca sete artistas locais que, apesar de já terem razoável trajetória
artística, talvez sejam menos lembrados e reconhecidos, como os baixistas Damon
Smith e George Cremasch, o trompetista Tom Djll e o saxofonista Dan Plonsey.
Essa proposta de dar voz a figuras que costumam aparecer menos oferece um
frescor extra ao documentário. Há algumas rápidas aparições ilustres, como a de
Anthony Braxton – na parte dedicada a Plonsey, que já gravou com o mestre –,
mas o foco está totalmente nos outros instrumentistas. Um filme sobre quem
ajuda a fermentar a cena, mesmo que de forma mais discreta.
“AMPLIFIED GESTURE” (2009)
Dir.: Phil Hopkins
Seguindo a linha do que o subtítulo do documentário promete (“An
Introduction to Free Improvisation: Practicioners and their Philosophy”), o
diretor Phil Hopkins entrevistou nomes destacados da improvisação livre para
compor esse painel. Preferindo se focar no que cada músico ouvido tinha a dizer
– deixando de lado a manjada fórmula de mostrar partes de shows entre as
entrevistas –, Hopkins apresenta uma variedade de perspectivas no fazer
improvisativo. Passam por sua câmera algumas autoridades no assunto: Evan
Parker, Eddie Prévost, Otomo Yoshihide, John Butcher, Keith Rowe, John Tilbury,
dentre outros. Um documentário que nos ajuda a pensar o quanto a improvisação
livre pode ser (e é) complexa: de gratuito, não há nada aqui.
“FREE THE JAZZ” (2014)
Dir.: Czaban Gyorgy
Este filme realizado na Hungria se estrutura de forma mais esquemática,
intercalando entrevistas e trechos de shows. O diretor Czaban Gyorgy aproveitou
a passagem de alguns dos nomes mais fortes da cena contemporânea pelo seu país
(Matthew Shipp, Mats Gustafsson, Ken Vandermark, Paal Nilssen-Love, Joe
McPhee...) para colher o material que utilizou no documentário. Peter Brötzmann
é quem ganha destaque um pouco maior, abrindo e encerrando o filme.
Interessante vê-lo falando o que pensa sobre o free e se colocando como “apenas
um músico de jazz”. Em sua fala final, diz Brötzmann: “Penso que o conceito de free
jazz teve sentido por um curto período nos anos 60... Usar o termo hoje pode
gerar mal-entendido. Neste mundo, nada é free. E nas últimas décadas,
desenvolvemos formas e estruturas nas quais a liberdade tem uma diferente
pegada do que era feito nos anos 60”.
“TAKING THE DOG FOR A WALK” (2014)
Dir.: Antoine Prum
O diretor de Luxemburgo Antoine Prum, que anteriormente realizou
“Sunny’s Time Now”, sobre o baterista Sunny Murray, apresenta neste seu documentário
a cena free impro britânica. Para compor este painel, que fala desde os inícios
da cena nos anos 60 até as manifestações atuais, Prum entrevistou figuras
centrais do Reino Unido, como Phil Minton, John Edwards, Maggie Nichols, Eddie
Prévost, John Russell, Roger Turner e Trevor Watts, além de recorrer a imagens
de shows. Nesta jornada, Prum é auxiliado pelo saxofonista Tony Bevan e pelo
comediante/diretor Stewart Lee, que conversam com os músicos e percorrem a
cena. O filme foi exibido no Brasil durante o festival In-Edit de 2015. Editado
em DVD duplo com extras e um CD bônus.
“FIRE MUSIC” (2018)
Dir.: Tom Surgal
Mais recente documentário a abordar a cena free jazzística, Fire Music:
A History of the Free Jazz Revolution levou vários anos para ficar pronto. Em
2014, já com diferentes entrevistas realizadas, os produtores iniciaram uma
campanha colaborativa para levantar recursos para finalizar o filme, que só
estrearia em 2018. Com produção executiva de Thurston Moore e Nels Cline, esse
documentário se arquiteta a partir de umas duas dúzias de entrevistas
realizadas com músicos do meio – Gunter Hampel, Bobby Bradford, Burton Greene,
Sonny Simmons, Oliver Lake, Noah Howard e John Tchicai (esses dois últimos, já
falecidos) foram alguns dos ouvidos – e imagens de shows e arquivos, mantendo o
foco na cena de Nova York e destacando histórias do “período de ouro” do free
jazz, na década de 1960.
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e
Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos;
foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com
publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Atualmente escreve sobre
música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os
álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the
Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e
Matthew Shipp (SMP Records)