Humanization 4tet: o aguardado retorno







CRÍTICAs  O genial Humanization 4tet ressurge após alguns anos com um novo título, Believe, Believe...







Por Fabricio Vieira


Com mais de uma década de atividade, o Humanization 4tet é um dos grupos mais inventivos e potentes da cena contemporânea. Unindo Portugal e Estados Unidos, o grupo reúne o guitarrista Luís Lopes e o saxofonista Rodrigo Amado aos irmãos texanos Aaron (baixo) e Stefan González (bateria) – filhos do grande trompetista Dennis González. O quarteto, idealizado por Lopes, fez sua estreia discográfica com um álbum homônimo editado em 2008 pela Clean Feed. Depois vieram os elogiados “Electricity” (2010) e “Live in Madison” (2013), ambos pela Ayler Records. Agora, após longa espera, podemos ouvi-los novamente em ação com o lançamento de Believe, Believe.

Em entrevista ao FreeForm, FreeJazz alguns anos atrás, Lopes falou sobre o nascimento do projeto: “Conheci os irmãos Aaron e Stefan Gonzalez em 2007. Andava na altura à procura de uma solução de banda para gravar uns temas que tinha vindo a compor, coisas simples. Um grupo com matriz no jazz, mas com gosto pela aventura, sem aqueles tiques académicos pindéricos, que não me interessam a mínima. Estavam em Lisboa a tocar com o Dennis Gonzalez, seu pai (...). Nessa noite, eu e o Rodrigo estávamos a tocar com o saxofonista grego Floros Floridis e depois fomos todos ver o concerto deles. E levámos os instrumentos. O Dennis, gentilmente, convidou-nos para tocar um pouco com eles. Houve química, boa vibração, uma energia muito positiva e uma enorme e intensa comunicação emotiva. Adorei os irmãos Gonzalez, a sua forma criativa e orgânica de tocar. Assim como o Rodrigo, têm uma bagagem considerável, em todas as frentes. Forte noção relativamente à história e património do jazz e às músicas improvisadas, de raiz e direcção criativas. Falámos muito também, partilhámos emoções fortes. Eu já conhecia o Rodrigo Amado, fazemos parte do mesmo circuito lisboeta. Tínhamos agora em secção rítmica os irmãos Gonzalez”.

Essa história iniciada cerca de treze anos atrás mostrou a que veio logo em seu álbum de estreia: lá encontramos já características que marcariam a particular sonoridade do Humanization 4tet. É curioso que o primeiro álbum traz o nome de Luís Lopes bastante destacado, mais do que o próprio nome do quarteto, como se a lembrar que aquele era um projeto dele. Mas já em “Electricity” o tamanho das letras do nome do guitarrista fica mais alinhado aos dos outros integrantes, como a indicar a importância do trabalho conjunto para a música do Humanization 4tet. E, de fato, o quarteto soa como um grupo muito coeso e uno, com a participação ativa de todos seus integrantes.

O novo Believe, Believe foi criado na última turnê do quarteto pelos Estados Unidos. Registrado “live in studio”, no dia 29 de junho de 2018, no Marigny Studios (New Orleans), "Believe, Believe" traz seis temas em que a estética do quarteto se revela em plena maturidade. Aqui não se trata de free impro. O Humanization 4tet parte de um campo free jazzístico ao qual adiciona elementos de outras vias expressivas a que também são ligados seus integrantes. Os temas, compostos alternadamente pelos instrumentistas (há ao menos um de cada), sempre tem uma linha bem identificável, a partir da qual se desenvolvem as improvisações, que podem se revelar bastante ariscas. Logo na faixa inicial do novo disco vemos tudo lá.  “Eddie Harris/Tranquilidad Alborotadora” inicia com uma revisitação a um tema do baixista Bill Lee, feito para o Clifford Jordan Quartet nos anos 70, “Eddie Harris”, que traz um saboroso ar swingante à abertura da peça. Esse motivo de entrada irá captar a atenção dos ouvintes que serão arrastados sem tardar a um desenvovimento mais free, com Amado já adentrando rumos mais picantes com seu sax, com a guitarra ascendendo a primeiro plano antes de chegarmos, lá pelos cinco minutos, a “Tranquilidad Alborotadora”, tema de Stefan (gravado anteriormente com o grupo Yells At Eels), mais uma vez introduzida pelo sax e seguida de um solo de guitarra, fortemente amparado pela percussão, que cresce com a reentrada do sopro, cada vez mais explosivo. Não podia haver cartão de visitas melhor: bem-vindos ao universo do Humanization 4tet.


Após "Replicate", a mais curta do conjunto e com energia bastante concentrada (que voltará ao fim do álbum em uma parte II), chegamos à incrível "Engorged Mosquitoes". A abertura melódica da peça enganará quem não tiver paciência para seguir adiante: esta é a faixa mais explosiva do conjunto, em que o quarteto mostra toda sua ruidosidade e energia, com os quatro instrumentistas soltando faíscas, sendo o sax o primeiro a solar intensamente, abrindo espaço depois à guitarra, com linhas noise que remete ao projeto solista de Lopes; Amado volta para o desfecho, enquanto Stefan mostra toda a potência de suas baquetas.  Quem quiser manter a temperatura elevada no mesmo ponto, o ideal é saltar para "Brainlust Distraction". Outro tema de Aron, assim como "Engorged Mosquitoes",  "Brainlust Distraction" é explosão pura, indicando provavelmente os gostos do baixista como ouvinte. O sax tenor mais uma vez se mostra fundamental para o peso e a intensidade da peça. Já "She"”, tema de Lopes, mostra uma outra face do grupo, sua voz mais soturna, melódica, algo melancólica.

O disco é breve, com apenas cerca de 35 minutos, e nos deixa com vontade de poder ouvir mais. O Humanization 4tet não se reúne muito, parece, quer seja pela distância das cidades onde vivem seus membros (metade de cada lado do Oceano), quer seja pelos diferentes projetos com que eles dividem seu tempo, o que ajuda a explicar não terem mais títulos em sua discografia –ideias, com certeza, não faltam. Eles deveriam estar em turnê pela Europa neste exato momento, mas a pandemia de coronavírus não permitiu isso. Quem sabe, quando forem reagendar a turnê, não consigam colocar o Brasil na rota?



Believe, Believe  ****(*)
Humanization 4tet
Clean Feed






-----------
*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Atualmente escreve sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)