A recente apresentação do documentário “Taking the Dog
for a Walk”, no In-Edit, sobre a cena free impro britânica, mostra o quanto é relevante tal
tipo de trabalho na missão de preservar e divulgar essa música. Nas últimas
décadas, uma série de outros filmes foram realizados com o intuito de documentar
o gênero e merecem ser (re)descobertos...
Não são poucos os filmes que existem feitos para retratar apenas
um músico do free em especial: Albert Ayler, Ken Vandermark, Cecil Taylor,
Peter Brotzmann, Sunny Murray, Ornette Coleman, David Murray, Steve Lacy, Milford Graves,
todos já protagonizaram documentários sobre suas obras e vidas.
Mas há também uma boa variedade de filmes que visam mostrar
a cena, desvendar o gênero, compreender o fascínio que a música livre desperta.
Fizemos um apanhado de diferentes documentários que, nas últimas décadas,
investigaram o universo do free jazz e da free improvisation, compondo um
painel sobre essa música, com registros do início dos anos 1980 para cá. São filmes
que, cada um à sua forma, buscam, por meio de entrevistas, documentos e gigs,
uma maneira de preservar essa arte ainda tão ignorada fora de seu restrito
núcleo. A seleção abaixo não esgota o tema, mas representa uma boa introdução a
esse universo e merece ser conhecida pelos apreciadores da música livre.
“IMAGINE THE SOUND”
1981 (Films We Like)
Dir.: Ron Mann
Documentário pioneiro no registro do universo do free jazz,
Imagine the Sound foca sua câmera em quatro destacadas figuras do gênero: Cecil
Taylor, Archie Shepp, Paul Bley e Bill Dixon. Entre entrevistas e apresentações,
o filme exibe um pouco da arte desses pioneiros – protagonistas do ápice do
free jazz em meados dos anos 1960 – e ajuda a construir uma narrativa muito pouco
documentada em vídeo até aquele momento. Os quatro músicos foram convidados a
criar novas peças para o filme; Taylor, por exemplo, apresenta uma de suas
intensas criações solistas, além de aparecer recitando seus intrigantes poemas,
que havia passado a escrever de forma mais constante exatamente na época em que
o filme foi realizado. Após longo período fora de catálogo, foi editado em DVD
em 2007.
(Cecil Taylor, solo, 1981. From ‘Imagine the Sound’)
“RISING TONES CROSS”
1985 (FilmPals)
Dir.: Ebba Jahn
O pano de fundo deste filme é o Sound Unity Festival –
precursor do icônico Vision Festival, organizado por William Parker e Patricia
Nicholson –, realizado em Nova York em 1984, que reuniu grandes nomes do free
europeu e dos EUA (Peter Brotzmann, Rashied Ali, Jemeel Moondoc, Don Cherry, Irène
Schweizer, Dennis Charles, Marilyn Crispell, Charles Tyler, Roy Campbell Jr.,
David S. Ware, Frank Wright, Jeane Lee, Billy Bang ...). Mas quem polariza
mesmo o documentário são duas figuras: o baixista alemão Peter Kowald (1944-2001) e o
saxofonista Charles Gayle. São eles que concentram as entrevistas e aparecem em
ação juntos em diferentes contextos. Com Kowald e Gayle, o diretor Ebba Jahn demarca
dois extremos: o músico europeu já reconhecido e respeitado no universo do free,
que passava uma temporada nos EUA para se aprofundar nas raízes do gênero; e o saxofonista
outsider norte-americano, à margem dentro da própria marginalizada cena –
Gayle, então com 45 anos, nunca tinha lançado um disco ou tocado fora de sua
região. Vale notar que esse é o primeiro registro oficial de Gayle, que
ajudou a levar a música do homeless para além de seu entorno.
(Charles Gayle, Peter Kowald, Ali. 1984. From
‘Rising Tones Cross’)
“ON THE EDGE: Improvisation in Music”
1992
Dir.: Jeremy Marr
Escrito e narrado pelo guitarrista Derek Bailey, este
documentário sobre a improvisação foi produzido para a TV britânica. Dividido
em quatro partes de cerca de uma hora cada, foi apresentado pelo Channel 4 no
começo de 92. Partindo do livro “Improvisation: Its Nature and Practice”, do
próprio Bailey, o documentário aborda a improvisação em suas mais variadas
formas, tanto na música ocidental quanto oriental. No longo panorama
apresentado, podemos assistir em ação, tocando e expondo suas ideias, alguns
dos expoentes do free jazz/free impro: Butch Morris, Steve Noble, George Lewis,
Alex Ward, Max Roach, Douglas Ewart, John Zorn... Mas a viagem é bem mais ampla
que o mundo do free; encontramos músicos das mais variadas origens e
perspectivas lidando com a liberdade criacional e interpretativa, sem
preconceitos, apenas música viva.
('On the Edge' - part III)
“INSIDE OUT
IN THE OPEN”
2001/2008 (ESP)
Dir.: Alan Roth
Com o subtítulo “An Expressionist Journey into the World
Known as Free Jazz”, o diretor Alan Routh não deixa dúvidas sobre sua intenção
ao realizar este documentário. E para essa jornada no mundo do free jazz, ele
convocou figuras destacadas dos tempos primeiros do gênero: Joseph Jarman, Alan
Silva, Burton Greene, Baikida Carroll, Roswell Rud e os já falecidos Marion
Brown (1931-2010) e John Tchicai (1936-2012). Há também a participação de
gerações mais novas no filme, dentre os quais Matthew Shipp, Susie Ibarra e
William Parker. Alternando depoimentos e passagens de concertos (a maioria
captado nos anos 90), Inside Out in the Open busca falar do free jazz de ontem
e de hoje, num panorama bem rápido (afinal, são cinco décadas de gênero para
cerca de 60 minutos de filme), mas envolvente. Uma boa introdução a essa música
vital.
“NOISY PEOPLE”
2007 (Poikus Film)
Dir.: Tim Perkis
Interessante documentário que busca retratar a improvisação
livre destacando nomes que não estão entre as estrelas do gênero, como é mais
comum ocorrer nesse tipo de filme. Focado na Bay Area, em San Francisco, Tim
Perkis destaca sete artistas locais que, apesar de já terem razoável trajetória
artística, são menos lembrados e reconhecidos, como os baixistas Damon Smith e
George Cremasch, o trompetista Tom Djll e o saxofonista Dan Plonsey. Essa
proposta de dar voz a figuras que costumam aparecer menos oferece um frescor
extra ao documentário. Há algumas rápidas aparições ilustres, como a de Anthony
Braxton – na parte dedicada a Plonsey, que já gravou com o mestre –, mas o foco
está totalmente nos outros instrumentistas. Um filme sobre quem ajuda a
fermentar a cena, mesmo que de forma mais discreta.
“AMPLIFIED GESTURE”
2009
Dir.: Phil Hopkins
Seguindo a linha do que o subtítulo do documentário promete
(“An Introduction to Free Improvisation: Practicioners and their Philosophy”),
o diretor Phil Hopkins entrevistou nomes destacados da improvisação livre para
compor esse painel. Preferindo se focar no que cada músico ouvido tinha a dizer
– deixando de lado a manjada fórmula de mostrar partes de shows entre as
entrevistas –, Hopkins apresenta uma variedade de perspectivas no fazer
improvisativo. Passam por sua câmera algumas autoridades no assunto: Evan
Parker, Eddie Prévost, Otomo Yoshihide, John Butcher, Keith Rowe, John Tilbury,
dentre outros. Um documentário que nos ajuda a pensar o quanto a improvisação
livre pode ser (e é) complexa: de gratuito, não há nada aqui.
“FREE THE JAZZ”
2014 (KVB)
Dir.: Czaban Gyorgy
Este filme realizado na Hungria se estrutura de forma mais esquemática,
intercalando entrevistas e trechos de shows. O diretor Czaban Gyorgy aproveitou
a passagem de alguns dos nomes mais fortes da cena contemporânea pelo seu país (Matthew
Shipp, Mats Gustafsson, Ken Vandermark, Paal Nilssen-Love, Joe McPhee...) para
colher o material que utilizou no documentário. Peter Brotzmann é quem ganha
destaque um pouco maior, abrindo e encerrando o filme. Interessante vê-lo
falando o que pensa sobre o free e se colocando como “apenas um músico de jazz”.
Em sua fala final, diz Brotz: “Penso que o conceito de free jazz teve sentido
por um curto período nos anos 60... Usar o termo hoje pode gerar mal
entendidos. Neste mundo, nada é ‘free’. E nas últimas décadas, desenvolvemos
formas e estruturas nas quais a liberdade tem uma diferente pegada do que era
feito nos anos 60”.
“FIRE MUSIC”
2015 [?]
Dir.: Tom Surgal
Ainda em produção, Fire Music promote apresentar “A History of
the Free Jazz Revolution”. Com produção executiva de Thurston Moore e Nels
Cline, esse documentário se arquiteta a partir de 25 entrevistas realizadas com
músicos do meio (Bobby Bradford, Burton Greene, John Tchicai, Evan Parker e
Oliver Lake são alguns dos convocados) e imagens de shows (já gravaram
apresentações de Brotzmann/Bennink, Marshall Allen, Vandermark/Lytton, Evan
Parker e outros mais). O projeto está em andamento há quatro anos, mas ainda
necessita de recursos para ser finalizado. Os responsáveis chegaram a abrir uma
campanha no Kickstarter para arrecadar fundos, mas não está claro em que pé
isso está. Aguardemos.
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*o autor:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em
Literatura, tendo se especializado na obra do escritor António Lobo Antunes.
Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; também foi correspondente
do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre literatura e música para o
jornal Valor Econômico